Geopolítica da contravenção: nova cúpula do bicho reparte territórios e investe no mercado digital para compensar queda nas jogatinas


 Como fazia nos fins de semana, um comerciante — sócio de pelo menos seis bares em Copacabana, no Centro e em Vila Isabel — percorria os estabelecimentos para verificar o faturamento. Em 9 de junho do ano passado, ele iniciou sua rodada por volta das 8h, mas não completou o roteiro. Sem perceber, era seguido por uma motocicleta vermelha, pilotada por um homem de bermuda e camiseta laranja. O último ponto foi o Bar Parada Obrigatória, na esquina da Rua Souza Franco com o Boulevard 28 de Setembro, em Vila Isabel, na Zona Norte. Ele saiu do local e entrou em seu carro. Faltando 30 segundos para o meio-dia, o comerciante parou no sinal da esquina de Souza Franco com Teodoro da Silva. Dois homens, num Polo cinza, saíram do veículo e atiraram 17 vezes contra ele, à queima-roupa. O homem da moto, conhecido como “visão”, era quem fazia a vigilância do alvo.


A vítima foi Antônio Gaspazianne Mesquita Chaves, de 33 anos. Segundo as investigações da Delegacia de Homicídios da Capital (DHC), ele vinha desviando dinheiro das máquinas de caça-níqueis instaladas em seus bares, para ficar com uma porcentagem maior do faturamento diário de R$ 4 mil gerado pelos dez equipamentos instalados na Parada Obrigatória. Testemunhas ouvidas pelos pesquisadores disseram que Gaspazianne adulterou os lacres dos equipamentos para aumentar sua fatia no esquema ilegal, ultrapassando os 25% a que teria direito no acordo. É o que, na linguagem da contravenção, chamamos de “tombo nas máquinas”.


No segundo capítulo da série sobre o novo mapa do jogo no Rio, iniciado ontem, são reveladas as alterações na geopolítica da contravenção fluminense com a ascensão da nova cúpula do bicho, os lucros provenientes da jogatina tradicional ilegal e os novos investimentos dos herdeiros da contravenção. A guerra travada pelo espólio do bicho foi tema da primeira parte da reportagem.



Foi justamente pelos lacres — com o desenho do escudo do Fluminense — usados ​​nas máquinas caça-níqueis que os investigadores da DHC chegaram ao nome do chefe que explora a jogatina na região: o contraventor Adilson Oliveira Coutinho Filho, o Adilsinho. No dia seguinte ao assassinato de Gaspazianne, os policiais apreenderam dez máquinas no outro bar da vítima, no Centro do Rio, com o mesmo dispositivo de identificação da Parada Obrigatória. O crime expõe a disputa pelo controle das áreas lucrativas de jogo de azar nas zonas Sul e Norte, e uma mudança significativa no mapa da contravenção com o surgimento da nova cúpula do bicho, que já vinha se desenhando desde 2023.


Relatório do homicídio de Gaspazziane produzido pela Delegacia de Homicídios da Capital, obtido com exclusividade pela GLOBO, cita essa troca de poder e o surgimento de Adilsinho, personagem no negócio ilegal das máquinas, até então conhecido nas investigações apenas por comandar a máfia do cigarro e pela festa em comemoração aos seus 51 anos, no Copacabana Palace, com o tema do filme “O poderoso chefão”. O documento escancara a disputa pelos pontos que, antes da entrada de Adilsinho, transmitiram a Bernardo Bello:


“Nesse sentido, é de conhecimento público que a contravenção é responsável pela exploração das máquinas de caça-níquel, sendo certo, ainda, que as regiões de Vila Isabel e Centro, outras comandadas por Bernardo Bello, atualmente, estão sob domínio do contraventor Adilsinho. Portanto, os atuais operadores das máquinas de caça-níquel instaladas nos bares dos referenciais bairros do Centro e Vila Isabel são integrantes do grupo de violência organizado liderado por Adilsinho”.


Além de Adilsinho, fazem parte da nova cúpula Rogério Andrade e Vinicius Drumond, filho do contraventor Luizinho Drumond, que foi patrono da Imperatriz Leopoldinense, e morreu vitimado por um AVC em 2020. O trio é conhecido no universo do bicho como “Santíssima Trindade”.


Ao adulterar os lacres de cor amarela — que dispunham de QR code — para desviar dinheiro dos donos das máquinas, Gaspazianne estava assinando sua própria sentença de morte. Não bastou nem o exemplo de um de seus sócios em outro bar, Manoel Davi Pereira, que, no fim de 2023, foi levado por homens encapuzados. A família de Pereira fez registro na 20ª DP (Vila Isabel), mas seu paradeiro nunca foi descoberto. Em depoimentos à delegacia, testemunhas confirmaram que o sócio de Gaspazianne também teria desviado dinheiro das máquinas. Uma testemunha chegou a relatar: “o comentário era de que estava dando tombo” nos caça-níqueis.


Com o sumiço de Pereira, Gaspazianne chegou a ir para Santa Quitéria, no interior do Ceará, a cerca de 190 quilômetros da capital, onde vive seus pais. Só avisei parentes e amigos quando já estava lá. De acordo com as investigações, como tinha muito dinheiro investido no comércio do Rio, acabou retornando.


Havia sinais de que as coisas não estavam tão tranquilas na Parada Obrigatória, mas Gaspazianne parecia não perceber. Em março ou abril, em depoimento na DHC, o sócio da vítima no bar de Vila Isabel contou que o operador de contravenção, responsável pelo bairro, decidiu instalar câmeras no estabelecimento.


também é policial civil aposentado e jogador profissional de pôquer — arrendava a maior parte dos pontos de jogo de José Caruzzo Escafura, o Piruinha, membro da velha cúpula do jogo. Seu império chegou a 250 pontos espalhados por um corredor formado por 15 bairros da Zona Norte, do Méier a Irajá.


Após a prisão de Mesqueu — que contou com o apoio de Bello e, portanto, foi desafeto da nova cúpula —, Adilsinho e Rogério pediram uma benção de Piruinha para sucedê-lo. Como já estava afastado da gestão do jogo e seus filhos com tino para o negócio feito morrido, Piruinha aceitou arrendar os pontos para a dupla mediante o pagamento de uma taxa de “chão”, ou seja, pelo uso de seu território. Em janeiro passado, Seu Zé, como Piruinha era chamado, morreu, aos 95 anos. Pessoas próximas à família afirmaram que o acordo segue de pé: Adilsinho e Rogério vão ficar no controle da região com o apoio do clã Escafura, nos mesmos moldes do que acontece em Vila Isabel e na Zona Sul com os Garcia.


de 2023, dia que a quadrilha de Adilsinho começou a invadir a Zona Sul.


A resposta escancara o método violento usado pelo bando naquela semana: “Pra amanhã, dá uma segurada porque os caras estão indo em todos os pontos, arrebentando, pegando dinheiro. Por enquanto, não vamos fazer manutenção, não. Até o patrão resolver o que vai fazer, acho que agora a bala vai começar a voar”.


Mesmo com Rogério preso desde outubro do ano passado, a aliança entre ele e Adilsinho continua. Segue o jogo.


Faturamento com apostas nos pontos teriam caído 90%

A popularização de apostas e cassinos on-line derrubou a fatura dos contraventores com o jogo do bicho e caça-níqueis. Planilhas descobertas pela Polícia Civil numa conta de e-mail de um gerente de Adilson Oliveira Coutinho Filho, o Adilsinho, revelaram que uma única máquina instalada num bar de Copacabana tinha faturamento médio de R$ 500 por semana entre maio e junho de 2023. Fontes que já afetaram na parte contábil da cúpula afirmaram que, no início dos anos 2000, cada máquina poderia render até R$ 2 mil semanais no bairro da Zona Sul — ou seja, o com. os caça-níqueis caíram 75% nas duas últimas décadas. Os ganhos com o jogo de papel tiveram queda ainda mais brusca: os ex-contadores estimam uma redução em 90% no mesmo período.


Os hábitos mudaram muito. Na virada dos anos 2000, o Rio vivia a febre das maquininhas, elas eram uma novidade que caiu nas graças da população. A geração mais nova não joga nas máquinas, joga nas apostas. Essa queda no faturamento do jogo “analógico” está por trás das mudanças no mapa do jogo. Há 50 anos, os lucros na Região Metropolitana com o jogo ilegal eram tão exorbitantes que podiam ser divididos entre dez famílias. Hoje, esse montante é bem menor, e a tendência é que haja menos integrantes na cúpula — explica um ex-gerente de pontos de jogo.


Para compensar as perdas, a nova cúpula tenta se estabelecer no mercado digital. A investigação do assassinato do advogado Rodrigo Marinho Crespo — executada com 21 tiros por homens encapuzados, em fevereiro de 2024, em pleno centro do Rio — escancara como os novos chefões estão buscando tirar concorrentes do mapa para se importar no ramo das apostas.


o policial militar Leandro Machado da Silva, acusado de alugar o veículo usado no monitoramento do advogado — viraram réus.


Na denúncia, a promotoria alegou que “a execução de Rodrigo Crespo não foi uma queima de arquivo, mas sim um aviso bastante violento e ousado contra todo e qualquer um que, mesmo dentro da lei, queira analisar a previsão de exploração dos jogos de azar”.


O Ministério Público do Rio já tem provas de que Rogério Andrade, outro membro da nova cúpula, tenta há pelo menos cinco anos espalhar seus tentáculos pelo mundo digital. Um e-mail encontrado pelo MP na conta de um integrante do núcleo tecnológico da quadrilha do bicheiro mostra que, ainda no primeiro semestre de 2020, o bando estava engajado no projeto de criar um site de apostas fora do país para operar no Brasil.


“O 01 já possui uma licença fora do Brasil para atuar com os jogos, sugiro montar todos os projetos funcionando legalmente no país que ele tem autorização e, em seguida, qualquer brasileiro vai poder jogar no site. Quando ele tiver isso, nunca mais vamos correr o risco de a justiça achar que estamos fazendo algo ilegal, nunca mais ele vai ser contraventor, ele vai tirar onda de verdade”, disse a mensagem.


Em agosto de 2022, quando Rogério foi preso pela Polícia Federal num sítio na Região Serrana do Rio, os agentes apreenderam um bilhete no local com uma menção a uma plataforma de apostas, a Heads Bet, e a frase “já está pronta”. Desde meados do ano passado, o site da Heads Bet, empresa sediada em Curaçao, um paraíso fiscal caribenho, está fora do ar após mais de dois anos de operação.


Ao longo da mesma investigação, o MP do Rio interceptou uma troca de mensagens em que um dos gerentes de Rogério alertou seu interlocutor, interessado em operar “apostas de futebol feitas em um site”, a não sediar a operação em regiões de influência do bicheiro: “Irmão, isso aí é uma coisa que é do homem, entendeu? Se for na área, não pode, entendeu? Ele proíbe mesmo”.




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