Matadores a serviço da nova cúpula do jogo do bicho usaram munição desviada da PM, da PRF e do Exército para matar rivais
Novo Escritório do Crime' tem 25 integrantes oriundos da PM do Rio e é suspeito de envolvimento em 18 homicídios, dois atentados e dois sequestros de vítimas que nunca mais foram vistas
Todos os dias, Ryan Patrick Barboza de Oliveira, de 23 anos, dava partida em sua moto e saía de casa antes de o sol nascer. A volta era só no final da noite, às vezes já na madrugada seguinte. Agoniada com a rotina, sua esposa resolveu desabafar: “Eu tô muito mal com tudo que está acontecendo. Acho que somos muito novos para viver assim”, escreveu a mulher no WhatsApp, no início da tarde de 5 de agosto do ano passado.
“Calma, eu vou resolver”, prometeu o marido. A mulher insistiu e questionou onde Ryan estava. A resposta foi lacônica: “Trabalho”. Quando um amigo fez a mesma pergunta, duas horas mais tarde, o jovem foi mais preciso. “Santa Cruz da Serra. Seguindo um carro aqui. Próxima vítima de assassinato kkk”, respondeu.
Ryan, mais conhecido como Motinha ou Visão, é apontado pela Polícia Civil como um dos integrantes do chamado novo Escritório do Crime, a quadrilha de matadores de aluguel que pavimentou à bala a ascensão da nova cúpula da contravenção do Rio. Segundo investigações da Delegacia de Homicídios da Capital (DHC), ele era responsável pelo monitoramento das vítimas e chegava a passar dias a fio seguindo todos os passos dos alvos, repassando em tempo real todas as informações para a quadrilha executar as vítimas.
No terceiro capítulo da série sobre o novo mapa do jogo ilegal no Rio, vamos destrinchar o rastro de sangue deixado pela quadrilha: em dois anos e meio, os matadores são suspeitos de envolvimento em pelo menos 18 homicídios, dois atentados malsucedidos e dois sequestros de vítimas que nunca mais foram vistas. A partir da análise de dez mil páginas de inquéritos, a reportagem identificou 25 agentes oriundos da Polícia Militar do Rio apontados como integrantes do grupo — 20 deles ainda estão na ativa e em liberdade, batendo ponto em mais de uma dezena de batalhões do estado. A infiltração do bando nas forças de segurança, no entanto, é ainda mais profunda: para matar seus desafetos, o novo Escritório do Crime usa munição comprada com dinheiro público. Em cenas de crimes atribuídos ao grupo, foram apreendidos cartuchos desviados da PM, da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e até do Exército.
O apelido do grupo faz referência ao consórcio de matadores fundado pelo ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega, cujos integrantes, se não morreram, foram presos em operações policiais. Aproveitando-se do vácuo deixado pelo ocaso do bando original, o novo Escritório se consolidou no mercado da pistolagem fluminense e teve papel crucial não só nas mudanças no mapa do jogo ilegal, como também na disputa pelo monopólio da venda de cigarro ilegal no estado: nove das vítimas tinham ligação com esse mercado — eram donos de banquinhas, fornecedores e revendedores que ousaram bater de frente com a quadrilha. Segundo a polícia, o maior beneficiado pelos crimes é Adilson Coutinho Oliveira Filho, o Adilsinho — que, além de ser um dos integrantes da nova cúpula, também é apontado como chefe de uma máfia que monopoliza a venda de cigarros ilegais no estado.
O novo Escritório do Crime, de acordo com as investigações, é chefiado por Rafael do Nascimento Dutra, o Sem Alma, um ex-cabo da PM que acabou expulso da corporação quando seus laços com Adilsinho foram expostos. Um áudio interceptado pela polícia mostra a proximidade entre os dois: “Vim a primeira vez na casa do Dutra agora. Tem que ver a casa dele! Também, ele já está há cinco anos com o patrão”, afirmou o homem. O “patrão”, segundo a polícia, é Adilsinho. Antes de ser expulso da PM, a corporação considerou Sem Alma “incapaz para o serviço policial” após ele ter sido baleado na região da axila durante uma operação. Sem Alma é acusado de ter cometido uma série de homicídios enquanto estava de licença médica.
A relação entre Ryan, o Motinha, e Sem Alma foi exposta por um aparelho de GPS encontrado pela polícia no carro do policial penal Bruno Kilier da Conceição Fernandes, executado a tiros no Recreio, em junho de 2023. Antes de ser instalado no veículo, o aparelho esteve, segundo dados extraídos de sua memória, no endereço da esposa de Ryan, em Magé, e num depósito de bebidas pertencente ao ex-PM, em Duque de Caxias. Numa operação da DHC no local, policiais encontraram a caixa do rastreador, da mesma marca da instalada no veículo de Kilier — que, segundo a polícia, atuava na revenda de cigarros contrabandeados.
O uso de rastreadores veiculares para o monitoramento das vítimas é comum na quadrilha. No homicídio de Cristiano de Souza, dono de uma tabacaria, executado apenas dois dias antes de Kilier, o equipamento também foi usado pelos matadores. No entanto, o criminoso encarregado de instalar o dispositivo errou de veículo, colocando-o num carro semelhante ao do alvo, que estava na garagem onde ele morava. Mas o equívoco não impediu que Cristiano, que era revendedor de cigarros concorrente da marca de Adilsinho, fosse morto.
A partir da quebra de sigilo telefônico de Sem Alma, os investigadores tiveram acesso a uma foto tirada durante uma comemoração da quadrilha após um assassinato. A imagem, datada de 15 de junho de 2023, mostra pelo menos 15 homens sorrindo ao redor de uma mesa de sinuca com cervejas espalhadas. No primeiro plano, Sem Alma sorri para a câmera. No fundo, Ryan aparece com um sorriso sem graça e um capuz sobre a cabeça. A foto foi enviada em um grupo de WhatsApp chamado “A Amizade”, com vários integrantes da quadrilha. Horas antes, o ex-PM Matheus Haddad Bittencourt Fernandes Leal, que atuava no comércio de cigarros, havia sido executado a tiros na Barra da Tijuca.
O emaranhado de crimes começou a ser desvendado a partir de uma assinatura deixada pelo bando: a polícia descobriu que as mesmas armas foram usadas em vários homicídios. Por exemplo: os fuzis usados no ataque que vitimou Marco Antônio Figueiredo Martins, o Marquinho Catiri, aliado de Bernardo Bello e desafeto da nova cúpula, também foram usados em crimes relacionados à disputa pelo monopólio da venda de cigarros, como os homicídios de Bruno Kilier; do policial civil João Joel de Araújo, em Guaratiba, em maio de 2022; e de Tiago Barbosa, o Tiago do Cigarro, em Nova Iguaçu, em junho de 2022.
— Percebemos que os crimes se conectavam pela similaridade de mecânica criminosa, pela utilização das mesmas armas de fogo ou pela motivação. As análises balísticas foram imprescindíveis, porque as provas técnicas são incontestáveis, até por não contamos com testemunhas nesses casos — afirmou o diretor do Departamento-Geral de Homicídios e Proteção à Pessoa, Alexandre Herdy.
Outro padrão veio à tona ao longo das investigações: o uso de munição desviada do Estado. Um levantamento feito identificou que cartuchos de 25 lotes vendidos para diferentes forças de segurança estaduais e federais foram usados pela quadrilha.
Só no local do homicídio do cabo da PM Daniel Mendonça da Silva, executado em abril de 2023 e apontado como integrante do bando de Bernardo Bello, foram apreendidos cartuchos de um lote adquirido pelo Exército em 2018, outro vendido à PRF em fevereiro de 2020 e mais quatro lotes vendidos à PM do Rio entre 2013 e 2017. Já cartuchos do lote CJN44, vendidos à Intervenção Federal em agosto de 2018, foram apreendidos em cenas de quatro crimes, como o atentado ao policial penal Altamir Senna, o Mizinho, em outubro de 2023, e a execução do ex-PM Matheus Haddad Leal.
Questionada se os PMs apontados como integrantes do novo Escritório do Crime respondem a algum procedimento interno, se continuam trabalhando ou foram afastados de suas funções, a PM apenas afirmou que “não compactua com desvios de conduta” e que pune “os envolvidos quando constatadas as irregularidades”. Quanto à munição desviada da corporação e usada em crimes cometidos pelo grupo, a corporação afirmou que tem uma investigação interna em curso. A PRF afirmou que tem conhecimento sobre o desvio de munição e abriu um procedimento de investigação.
Vítimas de sequestros nunca mais apareceram
Além de atentados e homicídios, os integrantes do novo Escritório do Crime são apontados como os responsáveis por pelo menos dois sequestros. No dia 29 de novembro de 2022, o camelô Anderson Reis dos Santos chegava em casa, no bairro Nossa Senhora de Fátima, em Nilópolis, por volta das 20h, quando percebeu um carro estranho, com vidros escuros, parado em sua rua.
Por estar com dores na perna, ele demorou para desembarcar. Foi tempo suficiente para o veículo se aproximar em baixa velocidade e emparelhar. Três homens armados, usando toucas ninjas, desembarcaram, pegaram Anderson e prenderam seus braços para trás com um lacre branco. Ao perceberem que a esposa dele aguardava no portão com a filha do casal, de apenas 6 anos, um dos criminosos disse: “Calma que a gente vai entrar em contato. A gente é polícia”.
Anderson foi colocado no Gol dos sequestradores e nunca mais foi visto. Depois do desaparecimento, a polícia descobriu que ele atuava na comercialização de cigarros paraguaios, o que contrariava os interesses de Adilsinho.
Alexsandro dos Santos Marques foi outra vítima. Em 12 de setembro de 2022, ele foi sequestrado por homens encapuzados e armados com fuzis quando buscava o filho na creche, em Bangu. Até hoje não foi localizado. As duas investigações ainda não foram concluídas.
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